Memorial Eurípedes Barsanulfo

Últimos Anos e Desencarne de Eurípedes Barsanulfo (1916-1918)

Os anos finais de uma vida dedicada à educação e à caridade

Os últimos anos da vida de Eurípedes Barsanulfo (1916-1918) foram marcados por intensos desafios, mas também pelo fortalecimento de sua obra educacional e espírita. Neste período, enfrentou crescente oposição de setores religiosos tradicionais, culminando em um processo judicial por exercício ilegal da medicina. Apesar das dificuldades, continuou seu trabalho no Colégio Allan Kardec e no atendimento aos necessitados, até seu desencarne durante a epidemia de Gripe Espanhola, em 1º de novembro de 1918.

Esta fase final da vida de Eurípedes Barsanulfo ocorreu em um contexto histórico significativo: o auge da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a pandemia de Gripe Espanhola, que devastou populações em todo o mundo.


Perseguições Religiosas (1916-1918)

A partir de 1916, Eurípedes enfrentou crescente oposição por parte de representantes da Igreja Católica, especialmente após o debate público com o padre Feliciano Iague em 1913. O Círculo Católico de Uberaba iniciou uma campanha sistemática contra o trabalho desenvolvido por Eurípedes em Sacramento, publicando artigos críticos e alertando a população sobre os "perigos" das práticas espíritas.

O documento discute as críticas e perseguições enfrentadas por Eurípedes Barsanulfo, um educador e médium em Sacramento, Minas Gerais, que dirige uma escola chamada Allan Kardec e realiza curas espirituais. Os opositores, representados pelo Círculo Católico de Uberaba, expressam preocupações sobre a influência de Barsanulfo sobre as crianças.
— O Reformador, Ano 1917, Novembro, Edição 00022

Estas perseguições se intensificaram à medida que a reputação da Farmácia Espírita e do Colégio Allan Kardec crescia, atraindo pessoas de diversas localidades em busca de cura e conhecimento. As atividades mediúnicas de Eurípedes e seu trabalho de cura gratuita representavam, para seus opositores, uma ameaça à ordem estabelecida e aos dogmas tradicionais.

Mesmo diante das críticas e perseguições, Eurípedes manteve uma postura serena e centrada em seus princípios, respondendo sempre com trabalho e dedicação, sem alimentar polêmicas desnecessárias. Sua defesa do Espiritismo sempre se baseou na razão, nos fatos observáveis e no exemplo de vida, conforme demonstrou no debate com o padre Iague e em outras ocasiões.

O Processo Judicial

O auge das perseguições ocorreu entre 22 de outubro de 1917 e 8 de maio de 1918, quando Eurípedes enfrentou um processo judicial por exercício ilegal da medicina. O processo foi motivado por denúncias relacionadas às atividades da Farmácia Espírita, onde medicamentos homeopáticos eram preparados e distribuídos gratuitamente aos necessitados.

Pontos Principais do Processo:

  • Acusação formal de prática ilegal da medicina
  • Questionamento da eficácia dos tratamentos homeopáticos e espirituais
  • Alegações de "charlatanismo" e "curandeirismo"
  • Preocupação com a influência sobre a população local

Durante o processo, Eurípedes contou com o apoio expressivo da comunidade de Sacramento e região. Inúmeras pessoas que haviam sido beneficiadas por seus tratamentos prestaram depoimentos em sua defesa, relatando curas e melhorias significativas em suas condições de saúde. Chamam atenção os relatos de pessoas que haviam recorrido anteriormente à medicina convencional sem resultados positivos.

A postura de Eurípedes foi exemplar durante todo o processo. Em vez de se defender atacando seus acusadores, ele limitou-se a apresentar os fatos e os resultados de seu trabalho. Quando questionado sobre qual de suas obras merecia condenação, respondia à semelhança de Cristo, direcionando a atenção não para sua pessoa, mas para os frutos de suas ações.

Em 8 de maio de 1918, o processo foi finalmente arquivado por falta de provas, representando uma vitória significativa não apenas para Eurípedes, mas para o movimento espírita brasileiro como um todo, que enfrentava desafios semelhantes em outras regiões do país.

A Conferência de 1918

Em 10 de abril de 1918, pouco após o arquivamento do processo judicial, Eurípedes realizou uma importante conferência no Colégio Allan Kardec. Este evento, registrado no periódico O Reformador, representa uma das suas últimas manifestações públicas de maior destaque.

Euripedes Barsanulpho realizou uma conferência espírita no Colégio Allan Kardec em Sacramento, abordando questões como a existência de Satanás, a origem da maldade, a criação divina, a lei do progresso e a governança do universo físico e moral.
— O Reformador, Ano 1918, Junho, Edição 00011

Nesta conferência, Eurípedes abordou questões filosóficas e doutrinárias profundas, demonstrando sua erudição e capacidade de articular conceitos complexos de forma acessível. A análise da natureza do mal, a negação da existência de um princípio maligno eterno (Satanás) e a afirmação da lei do progresso como governo do universo foram temas centrais de sua exposição.

O evento revela a maturidade intelectual e espiritual alcançada por Eurípedes, que, mesmo após o desgaste do processo judicial, mantinha-se firme em seus propósitos de divulgação dos princípios espíritas e educação moral. A conferência também evidencia como, mesmo nos últimos meses de sua vida física, ele continuava a contribuir ativamente para o desenvolvimento intelectual e moral da comunidade.

A Epidemia de Gripe Espanhola

Em outubro de 1918, a epidemia de Gripe Espanhola, que se espalhava pelo mundo desde o início daquele ano, chegou a Sacramento. Esta pandemia, uma das mais devastadoras da história, infectou aproximadamente um quarto da população mundial da época e causou entre 20 e 50 milhões de mortes.

Contexto da Gripe Espanhola no Brasil:

A epidemia chegou ao Brasil em setembro de 1918, trazida por um navio inglês. Rapidamente se espalhou pelas principais cidades e, posteriormente, pelo interior do país. O sistema de saúde, extremamente precário na época, não conseguiu dar resposta adequada à crise, aumentando dramaticamente o número de vítimas.

Com a chegada da epidemia a Sacramento, Eurípedes intensificou seus trabalhos de assistência aos doentes. As atividades do Colégio Allan Kardec foram temporariamente suspensas devido à gravidade da situação, e Eurípedes dedicou-se integralmente ao atendimento dos enfermos, tanto através da Farmácia Espírita quanto por meio de visitas domiciliares.

Em 23 de outubro de 1918, Eurípedes proferiu sua última oração fúnebre, em meio à crescente epidemia. O esforço para atender a todos que o procuravam, mesmo sabendo dos riscos para sua própria saúde, demonstra sua abnegação e compromisso com o próximo. Neste período, ele já apresentava sintomas da doença, mas mesmo assim continuou seus atendimentos até o limite de suas forças.

O Desencarne de Eurípedes

Em 24 de outubro de 1918, debilitado pelos sintomas da gripe, Eurípedes foi finalmente forçado a se recolher ao leito. Seu estado de saúde deteriorou-se rapidamente nos dias seguintes, refletindo o padrão típico da Gripe Espanhola, que muitas vezes progredia para pneumonia grave.

Surge na Europa, precisamente na Espanha, escabrosa e mortal epidemia de influenza, denominada gripe espanhola. Embora Sacramento não registrasse ainda nenhum caso, Eurípedes prepara a comunidade com avisos, orientações, medicações e tudo o mais necessário para a defesa dos sacramentanos.

O primeiro caso surgiu com um hóspede do Hotel do Comércio: a epidemia chegara a Sacramento. Os membros da família do hotel também foram contaminados e a gripe espanhola se alastrou incontrolavelmente pela cidade. Eurípedes e sua equipe não mediram esforços para o socorro dos doentes, dia e noite, sem parar. Até mesmo familiares seus foram contaminados.

No dia 22 de outubro de 1918, Eurípedes diz a seus colaboradores: “Vai desencarnar em Sacramento uma pessoa que terá um féretro concorridíssimo. Muitas flores e um número incalculável de coroas. Todas as pessoas, participantes do cortejo fúnebre, levam flores. E como choram! Lágrimas... muitas lágrimas... O homem que vai desencarnar é pobre. O caixão é pobre, mas o morto é querido...” Ninguém sequer imaginou que o Médium de Nosso Senhor previa seu próprio desencarne.

Se doando aos doentes sem descanso, Eurípedes acaba por contrair a doença. Mesmo febril, pálido, muito fraco, ele não abandona seu posto, busca os enfermos e os trata com amor e profundo carinho. D. Amália lhe pede: “Professor, tome seu banho de imersão”. Ele responde: “Não posso, D. Amália, preciso cuidar de meus doentes.”

A doença se agravou a ponto de Eurípedes começar a cambalear, e a única ajuda que cabia, ele não aceita. D. Amália não vê alternativa a não ser buscar Vovó Meca. Diante do pedido da velha para que repousasse, ele responde: “Não se pode deixar, diante de tantos doentes.” Vovó Meca usa então sua autoridade materna e ordena-lhe que se deite um pouco, ao que ele obedece. A determinação do Apóstolo da Caridade era incrível: mesmo deitado, ele continua atendendo.

Sentindo-se cada vez mais fraco, o Professor anuncia seu desencarne para o dia seguinte às 6:00 horas da manhã. Vovó Meca assiste aos últimos momentos do filho e ali, em corrente de orações, Eurípedes despede-se de seus companheiros de jornada, sob as bênçãos de Nosso Senhor e de sua Angélica Mãe Santíssima. Exatamente como previra, naquele dia e hora, Eurípedes Barsanulfo deixou as vestes físicas e seguiu para a Morada “Mansão da Paz”.

Uma chuva fina penetrava o solo, como a dizer que a cidade, amparada pela Natureza, chorava a perda do filho querido.

Os pássaros calaram-se, os animais domésticos silenciaram, as crianças ficaram mudas, os velhos passos. No último adeus a Eurípedes, a população inteira munida de flores acompanhava o cortejo fúnebre chorando e caminhando, caminhando e chorando.

O jornal “O Bora”, Semanário Independente de Sacramento, em 17 de novembro de 1918, edita uma nota longa sobre a passagem desta personalidade sobre a Terra. Destacamos algumas das palavras que endossamos integralmente: “A vida de Eurípedes Barsanulfo é um fato um tanto raro na história da humanidade. Compreendido dos elevados sentimentos de caridade e amor do próximo, só procurou fazer o bem pelo bem, auxiliando sempre os mais necessitados. Esse vulto eminente, essa alma toda cheia de bondade, não teve ódio nem rancor de ninguém. A humildade foi um dos traços predominantes de seu caráter reto, sempre avesso aos gozos efêmeros da vida terrena”.

Fonte: 1918, Ferreira, Amália; Paulo, Vicente de. Eurípedes, O Homem e a Missão. Livro.

Após dias de intenso sofrimento físico, mas mantendo a lucidez e serenidade espiritual, Eurípedes Barsanulfo desencarnou na manhã de 1º de novembro de 1918, aos 38 anos de idade. Os relatos sobre seus últimos momentos destacam a consciência e tranquilidade com que enfrentou a transição, chegando a prever o momento exato em que deixaria o corpo físico.

Volta à sua verdadeira patria, triumphante e feliz, deixando aqui na Terra profusamente espalhada a semente do Bem, que não cahiu sobre o pedregulho, mas em terreno por elle proprio adubado com a sua acção perseverante e com o seu exemplo edificador.
— O Reformador, Ano 1918, Novembro, Edição 00022

Últimas Palavras e Recomendações:

  • Orientações sobre a continuidade do Colégio Allan Kardec
  • Recomendações específicas a cada um dos familiares
  • Palavras de consolo e encorajamento
  • Pedido para que seus trabalhos prosseguissem
  • Manifestação de serenidade perante a transição

O desencarne de Eurípedes coincidiu com o Dia de Todos os Santos, 1º de novembro, data significativa no calendário religioso, o que foi interpretado por muitos como simbolicamente apropriado para alguém que dedicou sua vida ao serviço e ao amor ao próximo.

Repercussão e Legado

A notícia do desencarne de Eurípedes causou profunda comoção em Sacramento e região. Seu funeral reuniu grande número de pessoas, incluindo ex-alunos, pacientes beneficiados por seus tratamentos, colaboradores e admiradores de seu trabalho. Mesmo alguns de seus antigos opositores manifestaram respeito diante de sua partida.

A imprensa espírita, particularmente o periódico O Reformador, publicou extensas homenagens, destacando suas contribuições para a educação e para o movimento espírita brasileiro. O reconhecimento de sua obra transcendeu os círculos espíritas, com menções em jornais seculares que destacavam seu trabalho educacional inovador.

Imediatamente após seu desencarne, formou-se uma comissão para dar continuidade aos seus projetos. Watersides Willon, seu irmão, assumiu a direção do Colégio Allan Kardec e do Grupo Espírita Esperança e Caridade, garantindo a preservação do legado educacional e espiritual construído por Eurípedes.

Para a continuação da sua obra deixa elle um nucleo de espiritos perfeitamente instruidos e apparelhados, que saberão seguir-lhe as luminosas pégadas.
— O Reformador, Ano 1918, Novembro, Edição 00022

O exemplo de vida de Eurípedes Barsanulfo, sua dedicação abnegada à educação e à assistência aos necessitados, tornaram-se inspiração para gerações de educadores e trabalhadores espíritas. Sua abordagem inovadora à educação, integrando desenvolvimento intelectual, moral e espiritual, influenciou o surgimento de outras instituições educacionais de orientação espírita em todo o Brasil.

Contexto Histórico

Os últimos anos da vida de Eurípedes Barsanulfo ocorreram em um período historicamente conturbado, marcado por eventos que transformavam o mundo e o Brasil:

  • Primeira Guerra Mundial (1914-1918): O conflito que devastou a Europa chegou ao seu auge justamente no período final da vida de Eurípedes. Mesmo distante geograficamente, o Brasil sofria os impactos econômicos e sociais da guerra. Em suas aulas, Eurípedes chegou a relatar, através de experiências de desdobramento, visões do front de batalha, demonstrando sua sensibilidade mediúnica e preocupação com os sofrimentos humanos em escala global.
  • Pandemia de Gripe Espanhola (1918): A epidemia que vitimou Eurípedes foi um fenômeno global sem precedentes, infectando cerca de 500 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, a doença chegou em setembro de 1918 e se espalhou rapidamente, expondo as fragilidades do sistema de saúde pública e as desigualdades sociais. A dedicação de Eurípedes no atendimento aos doentes, mesmo à custa de sua própria saúde, reflete seu compromisso humanitário em um momento de crise sanitária.

No contexto brasileiro, esses anos representavam também um período de transformações sociais e políticas. A República enfrentava instabilidades, com crescentes movimentos operários e questionamentos à ordem oligárquica. A cultura e a educação viviam intensos debates sobre identidade nacional e modernização, com correntes conservadoras e progressistas disputando espaço nas instituições e na opinião pública.

No campo religioso, o catolicismo ainda mantinha forte hegemonia cultural, mas enfrentava a emergência de novas correntes de pensamento. O Espiritismo, em particular, ganhava adeptos nas camadas urbanas e entre intelectuais, mesmo enfrentando resistências e perseguições. A obra de Eurípedes Barsanulfo se insere neste contexto de pluralização do campo religioso brasileiro e de busca por novas formas de compreender a relação entre ciência, educação e espiritualidade.

Na educação, as primeiras décadas do século XX foram marcadas por debates sobre a modernização do ensino e a expansão da educação pública. O modelo pedagógico desenvolvido por Eurípedes no Colégio Allan Kardec dialogava com correntes pedagógicas inovadoras que questionavam os métodos tradicionais e propunham uma educação mais ativa e centrada no desenvolvimento integral do educando.

Referências

  • NOVELINO, Corina. Eurípedes: O Homem e a Missão. 1ª ed. Araras: IDE, 1979.
  • FEB. "Desencarne de Eurípedes Barsanulho". O Reformador, Ano 1918, Novembro, Edição 00022.
  • FEB. "Conferência em Sacramento". O Reformador, Ano 1918, Junho, Edição 00011.
  • FEB. "Círculo Católico de Uberaba e Eurípedes Barsanulfo". O Reformador, Ano 1917, Novembro, Edição 00022.
  • BIGHETO, Alessandro Cesar. Eurípedes Barsanulfo, um educador espírita na Primeira República. Dissertação de Mestrado. Unicamp, 2006.
  • FERREIRA, Inácio. Subsídios para a História de Eurípedes Barsanulfo. Uberaba: Gráfica A Flama, 1962.
  • RIZZINI, Jorge. Eurípedes Barsanulfo: o apóstolo da caridade. São Paulo: Editora USE, 1979.
  • 1918, FEB. Reformador. Periódico. Disponível em: docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=revreform . Acesso em: 5 out. 2024.