Memorial Eurípedes Barsanulfo

A Farmácia Espírita

A Farmácia Espírita fundada por Eurípedes Barsanulfo representa um dos aspectos mais significativos de sua obra social e espiritual, exemplificando a aplicação prática dos princípios espíritas no campo da saúde e da assistência aos necessitados.

"O alludido confrade iniciador d'essa fundação [do Grupo Espírita Esperança e Caridade] é, ao que sabemos, um espirita tão intelligente quão modesto e dedicado, e que á disposição dos enfermos e necessitados tem mantido, e agora com maioria de razão continuará a manter, uma pharmacia homœopathica, na qual — não percamos de assignalar — só no mez de agosto foram aviadas gratuitamente mais de 400 receitas."
— O Reformador, 1906

Origem do Interesse pela Homeopatia

O interesse de Eurípedes Barsanulfo pela homeopatia teve início ainda na sua adolescência, motivado inicialmente pela busca de soluções para os problemas de saúde de sua mãe, Dona Meca, que sofria de crises nervosas frequentes.

  • 1893: Aos 13 anos de idade, Eurípedes demonstra interesse pela homeopatia e cria uma pequena farmácia em sua casa, onde começou a estudar e experimentar medicamentos homeopáticos.
  • 1886: Ainda criança, com apenas 6 anos, Eurípedes já demonstrava interesse pelos livros de medicina do Dr. Onofre Ribeiro, revelando uma inclinação precoce para as ciências da cura.

A homeopatia havia sido introduzida no Brasil em meados do século XIX pelo médico francês Benoit Jules Müre, encontrando terreno fértil em um país com escassos recursos médicos convencionais, especialmente nas regiões interioranas. O sistema de cura criado por Samuel Hahnemann (1755-1843) baseava-se no princípio da similitude ("semelhante cura semelhante") e na dinamização dos medicamentos, utilizando substâncias diluídas e potencializadas.

Esta abordagem terapêutica encontrou significativa receptividade entre os espíritas brasileiros, que viam na homeopatia uma convergência com os princípios espirituais de cura. Adolfo Bezerra de Menezes, importante líder espírita e médico, foi um dos grandes defensores da homeopatia no Brasil, estabelecendo uma ligação entre esta prática médica e o Espiritismo que influenciaria gerações posteriores, incluindo Eurípedes Barsanulfo.

Estabelecimento da Farmácia Espírita

Após sua conversão ao Espiritismo em 1904, Eurípedes ampliou seus conhecimentos homeopáticos e fundou a Farmácia Espírita Esperança e Caridade, integrada ao Grupo Espírita de mesmo nome que havia estabelecido em 27 de janeiro de 1905.

"Passou Eurípedes a manipular medicamentos homeopáticos, utilizando sua farmácia não apenas como local para aviamento de receitas, mas também como centro de atendimento aos enfermos, onde harmonizava o tratamento homeopático com a assistência espiritual por meio de passes magnéticos e preces."

A instalação da Farmácia representava uma extensão natural de seu trabalho assistencial e espiritual, concretizando o ideal de caridade que fundamentava sua prática espírita. O estabelecimento funcionava em conjunto com o Grupo Espírita Esperança e Caridade, e posteriormente, com o Colégio Allan Kardec, formando um complexo assistencial, educacional e espiritual único para a época.

Funcionamento e Volume de Atendimentos

A Farmácia Espírita funcionava sob a coordenação direta de Eurípedes Barsanulfo, que combinava seus conhecimentos de homeopatia com sua sensibilidade mediúnica para diagnosticar e tratar os enfermos que o procuravam. O sistema de atendimento era absolutamente gratuito, firmado no princípio espírita: "Dai de graça o que de graça recebestes".

Volume de Atendimentos

  • Segundo registros do periódico "O Reformador", em agosto de 1906, foram aviadas gratuitamente mais de 400 receitas na Farmácia Espírita. Este número cresceu significativamente nos anos seguintes.
  • Por volta de 1917, o período de maior atividade, estima-se que a Farmácia chegou a atender cerca de 1.000 pessoas diariamente, provenientes não apenas de Sacramento, mas de diversas cidades da região.
  • O atendimento era organizado de forma sistemática, com horários estabelecidos, mas Eurípedes não se prendia a formalismos quando se tratava de atender os necessitados. Há relatos de que, mesmo durante a madrugada, atendia casos urgentes que chegavam à sua porta.

O trabalho na Farmácia Espírita contava com a colaboração de familiares de Eurípedes, especialmente suas irmãs, como Edalides Milan e Edirith Irany, que auxiliavam no preparo dos medicamentos e no atendimento aos pacientes. Após a conversão de Dona Meca, sua mãe, ao Espiritismo, ela também passou a colaborar ativamente nos trabalhos, desenvolvendo notáveis faculdades mediúnicas de cura.

Medicamentos e Práticas Terapêuticas

Os medicamentos utilizados na Farmácia Espírita eram predominantemente homeopáticos, preparados segundo os princípios estabelecidos por Hahnemann e adaptados às necessidades locais. Eurípedes estudava continuamente, aperfeiçoando seus conhecimentos tanto sobre a homeopatia quanto sobre as propriedades medicinais de plantas nativas brasileiras.

Tipo de Tratamento Descrição
Medicamentos Homeopáticos Remédios preparados segundo os princípios da homeopatia, com substâncias diluídas e dinamizadas.
Passes Magnéticos Transmissão de energias curativas por imposição de mãos, seguindo orientação mediúnica e técnicas desenvolvidas por Eurípedes.
Água Fluidificada Água magnetizada ou energizada espiritualmente, utilizada como complemento terapêutico.
Orientações Espirituais Aconselhamentos sobre condutas morais e espirituais consideradas importantes para o processo de cura integral do paciente.

A abordagem terapêutica da Farmácia Espírita se destacava por seu caráter holístico, tratando o indivíduo em sua totalidade: corpo, mente e espírito. Esta visão integrada da saúde representava uma inovação significativa em relação às práticas médicas convencionais da época, geralmente limitadas aos aspectos puramente físicos da doença.

Os passes magnéticos constituíam parte fundamental do tratamento. Eurípedes desenvolvia esta prática com extraordinária sensibilidade, frequentemente diagnosticando enfermidades por meio de sua vidência mediúnica e aplicando o passe de acordo com as necessidades específicas de cada paciente. Segundo relatos, ele conseguia visualizar os órgãos internos dos pacientes e os fluidos espirituais que os envolviam, direcionando o tratamento conforme estas percepções.

Casos de Curas Documentados

Diversos casos de curas realizadas por intermédio de Eurípedes Barsanulfo foram documentados por seus contemporâneos e pelos periódicos espíritas da época. Entre os mais notáveis, destaca-se o caso de Maria Modesto Cravo, ocorrido em 1916:

O Caso de Maria Modesto Cravo (1916)

Uma senhora de Uberaba, diagnosticada com graves distúrbios mentais e gangrena em uma perna, foi considerada irrecuperável pelos médicos locais, que recomendaram a amputação do membro afetado. Desesperada, a família recorreu a Eurípedes Barsanulfo em Sacramento.

Ao examinar a paciente, Eurípedes afirmou que o problema físico era resultado de uma obsessão espiritual e que não havia necessidade de amputação. Tratou-a com água fluidificada e passes magnéticos. Em apenas dois dias, os sintomas de gangrena desapareceram completamente e, em dezoito dias, a paciente estava totalmente recuperada do desequilíbrio mental.

Maria Modesto Cravo viveu muitos anos após este episódio, tendo desenvolvido mediunidade e se dedicado a trabalhos espíritas.

Outro caso significativo envolveu a própria irmã de Eurípedes, Eurídice Miltan (conhecida como Sinhazinha), que sofria de obsessão espiritual. Após tratamento espiritual e homeopático conduzido pelo irmão, recuperou-se completamente e tornou-se uma colaboradora ativa nos trabalhos espíritas.

Os casos de cura não se limitavam a enfermidades físicas ou obsessões. Há relatos de recuperação de pessoas com dependência alcoólica, problemas neurológicos, tuberculose e diversas outras condições consideradas incuráveis pela medicina da época. A abordagem integral de Eurípedes, tratando simultaneamente o corpo e o espírito, produzia resultados que surpreendiam os médicos convencionais.

Desafios e Perseguições

O trabalho desenvolvido por Eurípedes na Farmácia Espírita, apesar de seu caráter gratuito e assistencial, enfrentou significativa oposição, especialmente de setores médicos e religiosos tradicionais.

  • 1913: Debate público com o padre Feliciano Iague, onde Eurípedes defendeu os princípios espíritas e as práticas de cura realizadas na Farmácia Espírita.
  • 1917: Início do processo judicial contra Eurípedes por exercício ilegal da medicina, motivado por denúncias do Círculo Católico de Uberaba.
  • 8 de maio de 1918: Arquivamento do processo por falta de provas, marcando uma importante vitória para Eurípedes e para o movimento espírita.

As acusações de charlatanismo e curandeirismo baseavam-se no Código Penal brasileiro de 1890, que em seus artigos 156, 157 e 158 criminalizava práticas médicas e farmacêuticas não oficiais, assim como o "espiritismo, a magia e seus sortilégios". Estas disposições legais eram frequentemente utilizadas para reprimir as atividades espíritas, especialmente quando envolviam práticas de cura.

A perseguição enfrentada por Eurípedes teve desdobramentos judiciais, mas também manifestações populares de apoio. Seu processo se transformou em um caso emblemático para o movimento espírita brasileiro, evidenciando os conflitos entre a medicina oficial, as religiões tradicionais e as novas práticas espirituais que ganhavam espaço no país.

Contexto da Saúde Pública no Brasil

Para compreender a importância da Farmácia Espírita de Eurípedes Barsanulfo, é fundamental contextualizar a situação da saúde pública no Brasil no início do século XX, especialmente nas regiões interioranas.

A Saúde Pública no Brasil (1900-1920)

  • Extrema precariedade de serviços médicos no interior do país
  • Concentração de médicos e hospitais nas capitais e grandes cidades
  • Predominância de doenças infecciosas e epidêmicas
  • Início das campanhas sanitaristas lideradas por Oswaldo Cruz
  • Mortalidade infantil extremamente elevada
  • Medicina popular e práticas alternativas como única opção para muitas comunidades
  • Escassez de medicamentos industrializados e alto custo dos tratamentos médicos

Na região do Triângulo Mineiro, onde se localiza Sacramento, o acesso a cuidados médicos convencionais era extremamente limitado. A maioria da população rural e mesmo urbana das pequenas cidades tinha como único recurso as práticas populares de cura, como benzedeiras, raizeiros e curandeiros tradicionais.

Neste contexto, a Farmácia Espírita de Eurípedes representava uma alternativa estruturada e sistemática, combinando elementos das práticas populares com conhecimentos homeopáticos mais formalizados e a assistência espiritual. A gratuidade dos atendimentos tornava o acesso universal, em uma época em que a saúde pública organizada era praticamente inexistente no interior do Brasil.

Vale ressaltar que este período coincide com o surgimento das primeiras políticas públicas de saúde no Brasil, como as reformas sanitárias de Oswaldo Cruz (1903-1909) e Carlos Chagas (1919-1922). Contudo, estas iniciativas concentravam-se principalmente nos grandes centros urbanos e no combate a epidemias específicas, deixando vastas regiões do país desprovidas de assistência médica básica.

Legado da Farmácia Espírita

O trabalho desenvolvido por Eurípedes Barsanulfo na Farmácia Espírita deixou um legado significativo, que se estendeu muito além de seu desencarne em 1º de novembro de 1918. Sua abordagem integrativa, combinando homeopatia e tratamento espiritual, influenciou gerações de praticantes espíritas e estabeleceu um modelo para instituições semelhantes em todo o Brasil.

Após o desencarne de Eurípedes, seus colaboradores deram continuidade ao trabalho da Farmácia Espírita, embora com menor intensidade. Waltersídes Willon, seu irmão, assumiu a direção do Grupo Espírita Esperança e Caridade e manteve os atendimentos na medida do possível.

O modelo de assistência gratuita e a integração entre tratamento físico e espiritual foram incorporados por inúmeros centros espíritas em todo o país, resultando na criação de farmácias homeopáticas espíritas em diversas cidades brasileiras ao longo do século XX.

Em 1976, como parte das comemorações do centenário de nascimento de Eurípedes, foi inaugurada a Farmácia Homeopática "Tia Amália" no Colégio Allan Kardec, resgatando o trabalho iniciado por ele e dando continuidade ao atendimento homeopático gratuito à população.

A experiência da Farmácia Espírita de Eurípedes Barsanulfo também gerou importantes reflexões sobre a relação entre saúde e espiritualidade, antecipando discussões que só ganhariam espaço na medicina convencional muitas décadas depois. A abordagem holística e a atenção aos aspectos psicossomáticos das doenças, praticadas por Eurípedes, encontram hoje ressonância em correntes da medicina integrativa contemporânea.

Além disso, a Farmácia Espírita estabeleceu um importante precedente histórico para a defesa da liberdade religiosa e de práticas terapêuticas alternativas no Brasil. O processo judicial enfrentado por Eurípedes e seu desfecho favorável contribuíram para abrir espaço para o reconhecimento gradual de outras formas de tratamento além da medicina alopática convencional.

Por fim, o legado mais duradouro talvez seja o exemplo de dedicação desinteressada ao bem do próximo, princípio que norteou toda a atuação de Eurípedes Barsanulfo na Farmácia Espírita e que continua a inspirar iniciativas assistenciais espíritas até os dias atuais.

Referências Bibliográficas

  • NOVELINO, Corina. Eurípedes: O Homem e a Missão. IDE, 1979.
  • FERREIRA, Inácio. Subsídios para a História de Eurípedes Barsanulfo. Uberaba, 1962.
  • RIZZINI, Jorge. Eurípedes Barsanulfo: o apóstolo da caridade. 1979.
  • BIGHETO, Alessandro Cesar. Eurípedes Barsanulfo, um educador espírita na Primeira República. Dissertação de Mestrado, UNICAMP, 2006.
  • FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA. O Reformador, Ano 1906, Novembro, Edição 00021. "Instalação do Grupo Espírita Esperança e Caridade".
  • FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA. O Reformador, Ano 1911, Abril, Edição 00008. "Notícia sobre Colégio Allan Kardec".
  • FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA. O Reformador, Ano 1917, Novembro, Edição 00022. "Círculo Católico de Uberaba e Eurípedes Barsanulfo".
  • FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA. O Reformador, Ano 1918, Novembro, Edição 00022. "Desencarne de Eurípedes Barsanulpho".
  • SILVA, Jaqueline Peixoto Vieira da. Espiritismo e Educação: Eurípedes Barsanulfo e o Colégio Allan Kardec. Dissertação de Mestrado, UFU, 2017.
  • ABDALA, Dirceu. O apóstolo de Sacramento: Tombamento Religioso, Histórico, Cultural e Patrimonial de Eurípedes Barsanulfo. 2008.